sexta-feira, 17 de abril de 2009

Da escuta sensível ao diálogo “dodiscente” - Armando C. Arosa

Armando C. Arosa
armandoarosa@yahoo.com.br


O objetivo deste trabalho é percorrer um caminho que leve à reflexão acerca dos conceitos de “escuta sensível” e “escuta pedagógica”. Tais conceitos têm orientado, de maneira marcante, o trabalho pedagógico realizado em ambiente hospitalar, não só no âmbito da cidade de Niterói- RJ, como ponto de partida para a concepção de um importante programa de Pedagogia Hospitalar, mas também nos demais estados deste país, fundamentando boa parte dos trabalhos acadêmicos da área.
Para que se percorra este caminho reflexivo, é necessário trazer cada um desses conceitos, colocando-os em confronto com outras leituras possíveis, procurando aproximá-los do campo do pensamento pedagógico, bem como propondo uma categoria que possa produzir uma ampliação de seus significados.
Para Barbier (2002) a escuta sensível se caracteriza como um movimento de “escutar-ver”, que se apóia na “empatia”, objetivando a compreensão do outro em sua totalidade. Ao refletir sobre o conceito, o autor considera que, no processo de escuta, “o pesquisador deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro, para poder compreender de dentro de suas atitudes, comportamentos e sistemas de idéias, valores de símbolos e de mitos” (p.2). Nesse movimento de escuta, o ouvinte-sensível não julga, não mede, não compara. Para o autor, esse ouvinte-sensível também deve realizar um movimento de compreensão, sem adesão ou identificação com as opiniões ou ao que é dito ou feito.
Ao se tomar essa concepção de pesquisador, como alguém que é capaz de se relacionar com o outro e conhecê-lo em sua totalidade sem a produção de juízo, medida ou comparação, parte-se de uma concepção de conhecimento que se baseia na neutralidade e na objetividade. Sob essa ótica, o conhecimento surgiria da observação e da explicação causal dos fenômenos, de maneira objetiva e neutra, livre de valoração ou ideologia. Essa neutralidade axiológica, e epistemológica, faz, portanto, negar os condicionamentos histórico-sociais, entendendo que há uma ordem natural a ser compreendida e fazendo desaparecerem os interesses diversos que se manifestam nas ciências.
Pensar a produção de conhecimento na área social, mais especificamente no campo da educação, sob esse prisma, é entender que os processos sociais são entes imóveis, sobre os quais se pode produzir um olhar neutro e instantâneo, fechado e, portanto, sem considerar o todo em que se desenvolvem cada um de seus elementos. Ampliar o horizonte de observação da realidade a ser conhecida, considerando que os elementos constitutivos dos cenários onde ocorrem as tensões sociais podem ser compreendidos fora das circunstâncias conflituosas em que se desenvolvem, é igualmente limitar sua análise apenas ao foco a ser observado sem, contudo, compreender o todo em que o fenômeno se manifesta.
Torna-se necessária a pergunta: essa escuta que quer “compreender de dentro” pode ser realizada sem a criticidade necessária à construção do conhecimento? E mais, é possível alcançar essa neutralidade de que trata o autor?
Para Freire:
“A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das idéias.Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária (FREIRE, 2001a, p.135).

Compreender que os sujeitos se constituem nas relações que estabelecem entre si e perceber que essas relações se dão no corpo de um contexto social, seja no hospital, na escola, no local de trabalho,etc., é compreender também que a produção do conhecimento e sua difusão se processam em condições determinadas. Os sujeitos interferem nessas condições, todavia o fazem conforme as possibilidades que estas tais condições lhes proporcionam. Assim, o sujeito que escuta exerce sua escuta com os instrumentos que é capaz de construir e utilizar, nas condições sócio-históricas em que está inserido. Nesse sentido a fala que é produzida também se processa nas mesmas condições.
Nesse encontro entre o sujeito que fala e o sujeito que escuta há posições socialmente ocupadas e pontos de vista construídos de acordo com a história de cada um (e do grupo a que pertence), que os fazem diferentes. A escuta, pois, se dá num espaço de diferença, uma vez que esses sujeitos ocupam lugares distintos, embora não necessariamente antagônicos. Sendo assim, a neutralidade a priori da escuta não se verifica, uma vez que quem houve também ocupa um lugar a partir do qual escutará.
Para Barbier, é preciso identificar esse “lugar” de cada um dentro do campo de relações em que se processa esse movimento de escuta. Todavia, há um momento anterior a ser observado. Em seu entendimento, é preciso fazer primeiro o reconhecimento de quem se escuta em sua essencialidade. Diz o autor:
“Sem dúvida, deve-se saber apreciar o “lugar” diferencial de cada um dentro de um campo de relações sociais para se poder escutar sua palavra ou sua aptidão criadora. Mas a escuta sensível se recusa a ser uma obsessão sociológica fixando cada um em lugar e lhe negando uma abertura a outros modos de existência além daqueles impostos pelos papéis e pelo status. Ainda mais, a escuta sensível pressupõe uma inversão da atenção. Antes de situar uma pessoa em “seu lugar” começa-se por reconhecê-la em “seu ser”, dentro da qualidade de pessoa complexa dotada de uma liberdade e de uma imaginação criadora” (BARBIER, 2002. p.2).(grifo do autor)


Surge, pois, uma outra questão a ser trazida, sem, todavia, pretender esgotá-la, como a nenhuma outra aqui tocada, no caminho da reflexão que se percorre neste trabalho. A questão baseia-se na concepção de que é impossível compreender o sujeito, descolado do espaço-tempo a que está intrinsecamente vinculado e com o qual dialoga há todo momento da sua própria constituição como sujeito, seja qual for este espaço e este tempo. Assim, fica a pergunta sobre como ser possível primeiro compreender o sujeito como humano, como “ser”, se sua humanidade se constrói nas relações que estabelece com outros humanos, em um dado contexto.
Outro traço apresentado por Barbier é que a escuta sensível não é a projeção de nossas angústias ou de nossos desejos, mas a proposição de um trabalho sobre o eu-mesmo, “em função de nossa relação com a realidade, com o auxílio eventual de um terceiro ouvinte”(idem). Para o autor, esse terceiro ouvinte pode ser o psicanalista, psicoterapeuta, ou o sábio, no sentido oriental do termo.
No campo da educação, esse ouvinte é o professor, que realizará uma função mediadora. Nesse caso, Barbier (1997) dimensiona o educador como um “passeur”, como aquele que propicia o movimento em direção a um sentido a ser construído, ou ainda como um “articulador de finalidades”. A função do educador é, portanto, produzir a passagem de uma estrutura de conhecimento à outra.
A escuta sensível igualmente não se fixa sobre interpretação de fatos, ela procura compreender, por “empatia”, o sentido que existe em uma prática ou situação. Sendo assim, haveria uma suspensão de todo julgamento, que só poderia ser realizado num momento seguinte, em que houvesse o reconhecimento da confiança estável do indivíduo em relação ao terceiro ouvinte.
O caráter de totalidade complexa também é trazido pelo autor para construir a idéia de que a escuta sensível deve compreender que “alguém só é pessoa através da existência de um corpo, de uma imaginação, de uma razão e de uma afetividade, todos em interação permanente”(idem). Sendo assim, a audição, o tato, a gustação e o olfato se aplicam à escuta sensível. Por outro lado, as condições sócio-históricas não são apresentadas como intrínsecas à constituição desse ser humano. Não é possível pensar a criatividade, a imaginação, a razão e a afetividade humanas sem considerá-las no campo das relações sociais em que são construídas e se manifestam.
Nesse mesmo movimento, e ainda considerando a escuta como a escuta de um fala, de um discurso, de um enunciado, de uma narrativa cercada de multireferencialidade, como o próprio Barbier aponta, seu exercício requer a inferência do ouvinte sensível. O julgamento, a interpretação, a crítica, portanto, atravessam todo o processo, não sendo possível realizar, em nenhum momento, a sua suspensão absoluta.
Isso também não significa que o ouvinte deva encarnar uma autoridade inflexível a partir da qual passa a construir sua escuta. Compreende-se aqui como, no entendimento de Freire, que “no processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio a ser assumido com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e que escutam é um “sine qua” da comunicação dialógica”(FREIRE, 2001, p. 131). Esse silêncio significa o momento da escuta em que se reconhece, e demonstra, que o que se realiza é a escuta a um sujeito, reconhecendo também a importância do silêncio no espaço de comunicação. Nesse momento, então, é preciso compreender a escuta como elemento indispensável ao que é central no processo pedagógico: o diálogo.
Barbier parece centrar o conceito de escuta sensível na idéia de uma presença mediativa. Compreende mediação como “plena consciência de se estar com aquilo que é, aqui e agora, no mínimo gesto, na mínima atividade quotidiana”(BARBIER, 2002, p.4). Insistirá, também, evocando Husserl, numa neutralidade da teoria, de conceitualização e de toda representação imaginária do mundo. Em sua concepção, a escuta sensível é importante na educação, entendendo que o “outro-que-escuta não tem de dizer “a verdade” nem de proclamar “é preciso”. Deve simplesmente escutar e responder adequadamente à demanda, freqüentemente implícita, do aluno, do professor, etc.”(CERQUEIRA, 2006, p.37).
Aqui entra em cena um elemento que precisa ser lembrado e que diz respeito a uma discussão já desenvolvida no campo do pensamento educacional: a não diretividade no processo pedagógico[1]. A idéia de que se deva tão somente reagir às demandas dos sujeitos aprendentes pode produzir um entendimento acerca do processo educativo que leve ao espontaneísmo e à desqualificação das ações pedagógicas. O reconhecimento do outro, a aceitação, a confiança mútua entre quem fala e quem escuta não representam um impedimento à ação pedagógica, isto é, a uma ação educativa intencional, planejada e conscientemente desenvolvida.
É preciso compreender, como quer Freire, que:
“Toda prática formativa tem como objetivo ir mais além de onde está. É exatamente essa possibilidade que a prática educativa tem: a de mover-se até. É isso que a gente chama de diretividade – que faz parte da natureza do ser da educação. E essa diretividade - que faz parte da natureza do ser da educação – não permite que ela seja neutra” (FREIRE, 2001b, p.233)

Essa prática, então, aponta para uma construção coletiva que conjugue o que se escuta, de quem se escuta, como se escuta e porque se escuta, com objetivos claramente traçados, de modo que se processe de forma dialógica e transformadora.
Ricardo Ceccim propõe o termo “escuta pedagógica“, entendendo que “a palavra escuta diferencia-se da palavra audição”. Explicita que a audição se refere a um dos órgãos do sentido, à captação dos sons ou à sensibilidade do ouvir, enquanto a escuta diz respeito à captação das sensações do outro, realizando a integração ouvir-ver-sentir (CECCIM, 2001, p. 15).
Explica o autor:
“O termo escuta provém da psicanálise e diferencia-se da audição. Enquanto a audição se refere à apreensão/compreensão de vozes e sons audíveis, a escuta se refere à apreensão/compreensão de expectativas e sentidos, ouvindo através das palavras as lacunas do que é dito e os silêncios, ouvindo expressões e gestos, condutas e posturas.
A escuta não se limita ao campo da fala ou do falado, ao contrário, busca perscrutar os mundos interpessoais que constituem nossa subjetividade para cartografar o movimento das forças de vida que engendram nossa singularidade. (CECCIM, 1997, p. 31)”

É, portanto, uma disposição a priori para a decifração do que é dito e do que permanece interditado, no não dito, e funda-se numa ampliação da fala para além do que é verbalizado e/ou expresso. É uma busca de sentidos em que, mais do que a audição, é preciso empreender um movimento de “ouvir-ver-sentir”. Quanto à associação que produz com o termo pedagógico, sugere que “este ouvir-ver-sentir decorre de uma sensibilidade aos processos psíquicos e cognitivos experimentados pelo outro”(idem). Consiste, em princípio, numa disposição para a decifração de processos psíquicos e cognitivos por que passam, no caso, as crianças hospitalizadas.
A proposta de uma “escuta pedagógica”, segundo o autor, vem no sentido de “lançar um novo pensar à atenção de saúde da criança que está doente e que vivencia a internação hospitalar” (CECCIM, 1997, p. 76). Sua motivação inicial decorre da preocupação em, ao pensar a criança sob o ponto de vista de suas diversas necessidades, proporcionar uma assistência hospitalar que considere o humano em sua plenitude e complexidade. Ceccim propõe que:
“Pensar a criança com todas as suas necessidades específicas, e não só na necessidade de recomposição do organismo doente, e organizar uma assistência hospitalar que corresponda ao seu nível de desenvolvimento e realidade biológica, cognitiva, afetiva, psicológica e social demonstra uma iniciativa de reformulação do modelo tradicional de atendimento pediátrico para integrar conhecimentos, visões e experiências de atendimento infantil, cotejados com as diferentes áreas de elaboração do saber sobre a infância e para despertar projetos construtivos”( ibidem).

A preocupação de considerar o aspecto cognitivo no bojo das ações a serem implementadas no espaço hospitalar aparece também quando o autor fala de um olhar exclusivo que orienta as ações naquele espaço, centrado no clínico. Há, para Ceccim, a necessidade de se produzir uma “escuta pedagógica” quando se fala numa atenção integral à criança, abrindo-se mão de “uma exclusividade interpretativa do modo anatomoclínico tradicional, valorizando a singularidade das expressões da vida em cada criança”( CECCIM, 1997, p. 77).
É importante, para compreensão do sentido que o termo pedagógico ganha na acepção com que trabalha o autor, perceber que a dimensão cognitiva é trazida para, articulada com outras, contribuir para a compreensão do humano como uma complexidade que se constrói em diversas direções. Como entende Rejane Fontes (2005, p. 123), “Ceccim (1997) fala da escuta pedagógica para agenciar conexões, necessidades intelectuais, emoções e pensamentos”.
A “escuta pedagógica” proposta por Ceccim, apesar de apontar para outros elementos, traz uma nítida preocupação com a dimensão cognitiva da criança. Tal dimensão ganha centralidade na construção de um determinado sentido que passa a ter o processo educativo realizado no ambiente hospitalar. Esse “cognitivo” igualmente aparece vinculado ao sentido que assume o termo pedagógico, que, em muitos momentos, está associado, de maneira exclusiva, a mecanismos de aprendizagem, à necessidade de apreensão de conteúdos e à idéia de um atendimento complementar de caráter terapêutico, carregado de traços psicologizantes.
Para Ceccim:
“No desenvolver do trabalho, percebeu-se que as sessões de acompanhamento[2], além de procurar fazer com que as crianças ao retomarem à escola não estejam ou venham a se sentir em defasagem em relação aos seus colegas, servem como um espaço de expressão/operação de seus sentimentos. Deve-se estar atento, embora este não seja o objetivo principal do trabalho, para perceber e escutar quando as crianças expressam suas angústias, dúvidas, seus medos, pois, muitas vezes, essas questões interferem no seu.desenvolvimento e no próprio processo de cura, pois além dos efeitos diretos do adoecimento, ocorrem outras respostas reativas à hospitalização (Oremland, Oremlamd, 1973). E para que se possa ajudá-las, dentro do alcance pedagógico, é necessário uma efetiva escuta de seu processo cognitivo (o que nos diz; de que forma diz; o que expressa a sua escrita; como está o seu desejo de aprender; quais seus recursos de linguagem oral e escrita ou de leitura e com relação às operações matemáticas; em que estágio do desenvolvimento cognitivo se encontra; como está com os trabalhos escolares, etc., resgatando-se a integralização do atendimento infantil”(CECCIM,1997 , p.79).

Ao dizer da necessidade de se perceber e escutar as angústias das crianças, diz também não ser esse o principal do trabalho pedagógico. Para o autor, o trabalho pedagógico tem como um dos objetivos acompanhar o desenvolvimento cognitivo da criança em seu processo de aprendizagem. Além disso, a partir do contato com a escola, trabalha-se os conteúdos curriculares para evitar que ela fique com uma defasagem muito grande ao retomar à escola regular(CECCIM, 1997, p.79) Esse elemento aparece também quando o autor considera que “permitindo-nos sermos transversalizados pelo que a criança diz (...) tornamo-nos mais capazes de ajudá-la a converter a experiência de doença e hospitalização em potência de aprendizagens cognitivas e de desenvolvimento da apropriação do mundo”(CECCIM, 1997, p.77).
Para o autor, a “escuta pedagógica” deve se somar ao espectro de ações de que a criança é alvo, no sentido de construir uma nova ambiência no trato com a doença e o doente, trazendo esse aspecto cognitivo para o centro das preocupações. Não se trata de dar dimensão pedagógica ao tratamento médico, mas de incorporar à conduta terapêutica os aspectos sócio-afetivos e cognitivos. Nessa incorporação, o trabalho pedagógico aparece como elemento que contribui de maneira importante para a plena recuperação da criança:
“O atendimento pedagógico envolve ações pontuais diretas como no programa escolar-currícular e ações de acompanhamento, no sentido de observar a evolução do processo de desenvolvimento cognitivo e sócio-afetivo da criança. Entendemos que a criança, porque aprende, porque pensa, se desenvolve e, com isso, enfrenta melhor os acontecimentos de sua vida. A percepção de que, mesmo doente, pode aprender, brincar, criar e, principalmente, continuar interagindo socialmente, muitas vezes ajuda na sua recuperação. Entendendo melhor o que acontece com ela, a sua doença e o contexto hospitalar, a criança terá uma atitude mais ativa diante da enfermidade, independente de suas conseqüências, ao invés de uma atitude passiva de vitimização” (CECIM, 1997, p.79).

É evidente o grande avanço proporcionado por essa reflexão acerca do atendimento integral à criança hospitalizada. Pensar a criança em sua complexidade e considerar os aspectos cognitivos no processo de recuperação de seu organismo doente, convertendo suas experiências de internação em potências de aprendizagem são aspectos importantes na construção desse movimento em que se inscreve a “escuta pedagógica”. Todavia, é preciso alargar sua compreensão.
O olhar ampliado sobre a criança, incorporado pela “escuta pedagógica“, deve, necessariamente, ganhar uma dimensão que ultrapassa a escuta. É necessário que se estabeleça com a criança um diálogo: elemento fundande do processo educativo.
Como lembra Rejane Fontes:
“A escuta pedagógica diferencia-se das demais escutas realizadas pelo serviço social ou pela psicologia no hospital, ao trazer a marca da construção do conhecimento sobre aquele espaço, aquela rotina, as informações médicas ou aquela doença, de forma lúdica e, ao mesmo tempo, didática. Na realidade, não é uma escuta sem eco. É uma escuta da qual brota o diálogo, que é a base de toda a educação” (FONTES, 2005, p. 123).

Essa relação direta de que fala Fontes entre a “escuta pedagógica” e o diálogo que fundamenta o processo educativo, todavia, não aparece vinculada a uma intencionalidade pedagógica, mas como uma atitude subjetiva a ser adotada, ou ainda, como uma escuta a mais a ser produzida sobre a criança que se encontra hospitalizada.
Mas que diálogo deve então ser estabelecido? Para Freire, a relação dialógica funda o ato de ensinar, que se completa em outro: no de aprender. Estes dois atos, ensinar e aprender, só se tornam possíveis quando não há nenhum impedimento para que o educando expresse seu pensamento. O diálogo, pois, a ser estabelecido é aquele que garante a manutenção da identidade dos sujeitos nele engajados. Assim, a criança não é o “objeto” que deve ser ouvido. Nem o(a) professor(a) é o sujeito que escuta. Ambos escutam, ambos falam, não havendo, por isso, espaço para uma fala impositiva.
Portanto, como entende Freire:
“Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto do seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele” (FREIRE, 2001 p.127).

Quando se pensa na ação educadora como uma intermediação, ou uma facilitação, desconsidera-se a imersão desses sujeitos envolvidos no processo de ensinar-aprendendo em uma rede de relações que os condicionam. Poder-se-ia, pois, imaginar que o contexto em que se dá essa relação (criança-professor(a)) só afeta a criança. Mas, ao contrário, o ambiente hospitalar, ou qualquer outro espaço social, afeta ambos. Desse modo, professor(a) e criança exercem sua condição de sujeitos, porque sofrem e produzem transformações. Essa relação entre sujeitos, todavia, não se estabelece quando se fala de uma escuta neutra, ou de um processo que propicie um “agenciamento de conexões, necessidades intelectuais, emoções ou pensamentos”.
No processo de ensinar-aprendendo, é preciso, igualmente, compreender a criança como um sujeito que traz consigo uma gama de conhecimentos sobre o mundo, que foram construídos em diversas situações, sob diversas influências. Esse fato faz com que o(a) professor(a) também aprenda com a criança. E não só “aprender” sobre suas emoções, ou sentimentos, mas sobre o mundo, uma vez que a criança também traz conhecimentos sobre esse mundo.
Mais, então, do que a disposição para a escuta, para a decifração, é necessária uma disposição para uma escuta crítica, que se estabeleça a partir do respeito e no reconhecimento do outro como sujeito com o qual também se aprende.
Da mesma forma, por isso, não há diálogo possível nem no espontaneísmo, nem no autoritarismo. Para Freire “o diálogo não pode converter-se num bate-papo desobrigado que marche ao gosto do acaso entre professor ou professora e educando” (FREIRE, 2000, p.118). É preciso que haja um diálogo em que o(a) professor(a) compreenda seu papel político. Mais do que um(a) mediador(a), um(a) “passeur”, ou um(a) agenciador(a) da aprendizagem, o(a) professor(a) deve encarnar a tarefa de problematizar a realidade em que vive, ele(a) mesmo(a), e o(a) educando(a), sem a presunção de que é possível conhecê-lo(a) plenamente.
Nesse sentido, é preciso também tomar a noção de práxis como central. Para Freire, o ser humano é um ser da práxis, ou seja, um ser da ação e da reflexão. Uma vez que está inserido no mundo, e sua humanidade se realiza nas relações que estabelece e na reflexão que produz sobre si e sobre o mundo, o ser humano do mesmo modo que produz transformação se transforma, num permanente movimento de formar-se, formando. O(a) professor(a) passa a ser esse elemento que, ao problematizar a realidade, no diálogo com o educando, aprende com ele.
Se a educação é um processo permanente e a relação do sujeito com o mundo se dá na reflexão e na ação sobre ele (práxis), o processo de construção do conhecimento se dá nesse mesmo movimento. Ou seja, ensinar não é transmitir conhecimento, bem como aprender não significa receber acriticamente um conteúdo acabado. Aprender e ensinar fazem parte do conhecer, que implica como diz Freire, em re-conhecer (FREIRE, 2001). Compreendendo o processo desse modo, como aponta o autor, não há como separar o ato de aprender do ato de ensinar:
"Não há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender" (idem, p. 25).

A esse movimento, de ensinar-aprendendo e aprender-ensinando Freire chama de “dodiscência”. Diz Freire:
“ Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A “dodiscência” - docência-discência - e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico” (idem, p. 31).

Mais uma vez o caráter dialógico aparece de maneira determinante. Não é possível ensinar-aprendendo sem a disposição para o diálogo. O diálogo “dodiscente”. Aquele que se estabelece entre os sujeitos que ensinam-aprendendo e aprendem-ensinando. Diálogo este que é condição para a ação pedagógica, ação que só se processa no seu próprio exercício dialógico. Diálogo que está carregado de intencionalidade pedagógica, que se organiza a partir do compromisso de transformar essa realidade em que está inscrito. Não o diálogo como elemento estratégico, didático, em que a escuta se dá no sentido de “diagnosticar”, ou de “deixar falar”, ou ainda de “ouvir demanda”.O diálogo ganha esse caráter “dodiscente” na medida em que os sujeitos aprendem e ensinam um ao outro. O conhecimento, de ambos, entra no jogo dialógico e o(a) professor(a), por tarefa profissional, deve problematizar, tanto o que traz o aluno quanto o que pretende ensinar.
Por fim, saber o que sente e pensa a criança hospitalizada não pode significar apenas uma atitude compreensiva, diante daquela situação. É preciso transformar esse saber em conhecimento a ser problematizado. Não se trata de, ao saber o que pensa e sente a criança, construir estratégias didáticas para ensinar o que ela precisa saber. Trata-se de aprender com ela sobre o conhecimento que deve ser ensinado, pois ao ensinar a ela, aprende-se com ela. Esse “diálogo dodiscente” representa, portanto, mais que uma escuta seguida de uma fala, ou de uma ação a partir de uma escuta. É uma ação partilhada em que os sujeitos que se ouvem e se falam, portanto, dialogam, se formam mutuamente, uma vez que, como ensina Freire, “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (FREIRE, 2001, p.25).

























REFERÊNCIAS
BARBIER, René. O educador como “Passeur” de sentido.in: http://forumeja.org.br/df/?q=node/769.(1997).
BARBIER, René. Escuta sensível na formação de profissionais de saúde. Conferência na Escola Superior de Ciências da Saúde – FEPECS – SES-GDF. 2002 In: http://www.saude.df.gov.br/FEPECS.
CECCIM, Ricardo Burg. A escuta pedagógica no ambiente hospitalar. In: Anais do 1º Encontro Nacional sobre Atendimento Escolar Hospitalar, realizado entre 19 e 21 de julho de 2000.Rio de Janeiro: UERJ, 2001.
CECCIM, Ricardo Burg. e CARVALHO, Paulo R. A.(Org.).Criança hospitalizada. Atenção Integral como Escuta à Vida. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS, 1997.
CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. O professor em sala de aula: reflexão sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível. PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, v. 7, nº 1, p. 29-38, Jan./Jun. 2006 29. In: http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/psic/v7n1/v7n1a05.pdf.
FONTES, Rejane A escuta pedagógica à criança hospitalizada: discutindo o papel da educação no hospital. Rev. Bras. Educ. no.29 Rio de Janeiro May/Aug. 2005 In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782005000200010)
FREIRE, Paulo e MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo e leitura da palavra. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança.7ª edição. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Ed. Paz e Terra. 2001a. 19ª Edição.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria de Araújo Freire (org) São Paulo:E. UNESP, 2001b.
[1] “Na medida em que toda prática educativa transcende a si mesma, supondo um objetivo a ser atingido, não pode ser não-diretiva. Não existe prática educacional que não aponte para um objetivo; isso prova que a natureza da prática educativa tem uma direção” (FREIRE,1994, p.86).
[2] O autor se refere ao que denomina acompanhamento, ou trabalho, pedagógico.